“Viado!”. Essa foi a primeira palavra que ouvi quando entrei pelo portão da escola em 1979. Minha merendeira era rosa com branco, porque minha mãe comprou numa promoção que vendiam duas juntas uma para mim e uma para minha irmã, era o máximo que ela podia fazer, tendo sete filhos em idade escolar. Decorei a palavra para pesquisar num dicionário de capa preta que tinha na casa da minha vizinha, Dona Tereza. Sim, eu já sabia ler e escrever, pois como não tínhamos brinquedos, minha irmã Mara brincava de escolinha comigo e meu irmão Edson me obrigava ler os quadrinhos Tex.

Alguns anos depois minha professora de Educação Física não me deixava fazer nenhum esporte. Dizia “isso é coisa pra macho, você é muito mole”. Me fez escrever ‘maços’ e ‘maços’ de “papel almaço” sobre voleibol, basquetebol, futebol e alguns outros esportes que nunca ouvira falar. Escrevia por horas, só porque não conseguia chutar uma bola. Naquela época meu www se chamava Barsa.

Não pude fazer primeira comunhão, não tinha roupa branca. A catequizadora disse que a igreja já tinha pobres demais. Minha professora de Português, na mesma época, me fez ler dezessete livros num ano, ela me disse “ao menos quando seu patrão mandar você ler a lista telefônica você vai saber”. Lembro-me de ter lido um tal de Umberto Eco, “O Nome da Rosa”. Um dia desmaiei na sala de aula porque a professora disse na frente de todos que meu pai era alcoólatra, e isso me matava por dentro. Mas depois dos meus doze ele parou, foi embora muito cedo, mas deu tempo de amá-lo. Quando eu tentava levantá-lo do chão, bêbado, ele me dizia “não vá para a escola, você não precisa dela para aprender” E no pé do ouvido “eles metem bobagens na sua cabeça”. Recebi muitos títulos para entender o que ele, alcoólatra e filósofo existencialista já sabia.

 Miravam aquela figura esquálida, bisonha e pobre que eu era de cima a baixo e podia ler nos seus olhos “isso não vai dar em nada nessa vida”. Segundo grau noturno público. Graduação pública sem um centavo no bolso. Até hoje vejo os três livros do Janson que nunca pude comprar e passo direto, talvez um dia supere isso. Eu precisava ser o melhor, não tinha escolha. No mesmo ano que me graduei passei no mestrado. Fiz público, assim como o mestrado, na sequência, o doutorado e, sem falar outra língua e com seis parafusos na coluna, me lancei no deserto do Texas onde, sozinho, sem meus amigos, meu amor, minha família, pensei “não dá para continuar, vou desistir, acho que tudo termina aqui, já cheguei longe o bastante, até aqui tá bom”. Liguei para minha mãe. Não, não dá para narrar essa conversa. Um ano depois dessa ligação defendi uma Tese sobre a qual me disseram com todas as letras: B-R-I-L-H-A-N-T-E. Doutor João Porto, muito prazer.

 Essa semana uma aluna, que a mãe cisma que vai enfiar a cabeça dela na privada, me disse que vai ser advogada. Olhei bem para aquela figura esguia, sobre quem muitos diriam “não vai dar em nada na vida”. Ela nem tem o que comer. Essa favela e sua violência vão engoli-la. De vez em quando reclama que estão rindo do seu tênis furado. O pai está preso. Drogas. Come avidamente a merenda oferecida pela escola como se fosse a única comida do dia. Já a vi chorando, como já a vi sorrindo. Talvez ela não vire mesmo advogada, talvez ela tome outro rumo, como tantas outras, naquele bairro formado do descabimento da justiça social. Talvez ela engravide aos treze. Talvez a mãe dela a afogue mesmo, na privada. Talvez ela nunca leia um livro. Talvez algum professor a fira profetizando que, como negra, ela não tem muitas chances, talvez a escola “lhe meta bobagens na cabeça”. Porém na escola, e mesmo na vida, a palavra TALVEZ não dá suporte à palavra SUPERAÇÃO. Dentre todas as agruras e todos os “talvezes” escolares, é inegável que na escola – com suas falhas, seus acertos, seus atores, suas políticas, seus currículos atravessados e incompatíveis com as diferentes genialidades e seus diferentes ‘cem por cento’ – se dão os maiores exemplos de superação que nosso niilismo possa suportar.

 

Essa semana… bem, nessa semana uma aluna me disse que vai ser advogada. Então, uma aluna, de dez anos que não tem o que comer me disse que vai ser advogada. Uma aluna disse que vai ser advogada. Já sei, já escrevi isso inúmeras vezes… é porque não pretendo esquecer.

SOBRE O AUTOR

João Porto

João Porto é capixaba, meio agreste, mas é gente boa. Noveleiro, crítico pra caramba. Doutor em Educação e Práticas Inclusivas, trabalha com crianças e ama o que faz.